A mente está no peito

Ana Bezerra Felicio
19 min readJul 27, 2023

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Pelo menos para a maioria dos antigos gregos e romanos!

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Segundo a física estoica, para que haja comunicação entre corpo humano e sensações, mente, impressões, julgamentos, respostas afetivas, as últimas devem ser corpóreas; caso contrário, não se poderiam comunicar. Por isso, a alma e tudo o que a envolve pode ser descrita em termos físicos, já que esses fenômenos de alguma forma causam mudanças espaciais e físicas no mundo (GRAVER, 2007, P. 17; DE PIETRO, 2013, p. 128). Isso quer dizer: mudanças de status na mente são fatos físicos, mudanças no mundo. Com essa “visão materialista do mundo” (DE PIETRO, 2013, p. 128), começamos a estabelecer os termos do que seria a afetividade humana para o estoicismo.

É Tertuliano quem, entre os séculos II e III da era Cristã, transmite a visão que o estoico Cleantes de Assos (ca. 330–230 a.C) teria quanto à natureza corpórea das emoções (adfectus):

Também Cleantes defende a ideia de que não apenas uma semelhança quanto às feições do corpo, mas também quanto às características da alma seriam teriam uma correspondência nos filhos como se a partir de um espelho de costumes, faculdades intelectuais e afetos (adfectum): no entanto, a semelhança e dissemelhança do corpo é que são refletidos: também com a alma ocorre da mesma forma que com o corpo, de acordo com a semelhança ou dissemelhança. Igualmente, as paixões corpóreas e incorpóreas não têm nada em comum. Por conseguinte, ele diz que a alma sofre junto com o corpo, quando ele adoece, ferido por golpes, feridas, úlceras; e também o corpo sofre junto com a alma, adoecendo junto quando ela se aflige com preocupações, angústia, amor, em detrimento do vigor de seu sócio: a vergonha e pudor da alma são atestados pelo rubor e palidez deste. Portanto, desta comunicação de paixões corpóreas, infere-se que a alma é corpórea. — Tertuliano, De Anima 5.4–5, SVF 1.518 part.)[1]

Parafraseando o argumento de Cleantes tal qual reportado no tratado Sobre a alma de Tertuliano, temos que: alma e corpo se comunicam por serem parecidos (similitudinem), se não o fossem, não se poderiam comunicar, pois, presume-se, o que é incorpóreo não pode se misturar com o que é corpóreo. Por podermos sentir em nosso corpo (por meio da palidez ou rubor, como exemplificado) as alterações ocorridas na alma (anima), ela deve, necessariamente, ter natureza tangível.

Além disso, conforme se lê no texto abaixo, de autoria do filósofo cristão Calcídio (séc. IV de nossa era), no entender os antigos estoicos (nomeadamente, Zenão e Crisipo) a substância que compõe a alma (anima) é o pneuma ou spiritus (palavra que, em latim, tal como ocorre com o vocábulo grego psiquê, quer dizer, “hálito”, “fôlego”, “respiração”, sentidos 1,2 e 3 do OLD; e, de modo mais abstrato, “espírito”, OLD sentido 4):[2]

Mas os estoicos concordam com que o coração seria efetivamente a sede da principal parte da alma, e não o sangue, que nasce com o corpo. O fato de que o fôlego (spiritus) é alma é afirmado por Zenão pelo fato de que, quando aquele abandona o corpo, o ser animado morre; portanto, o fôlego natural é a alma. Crisipo diz o mesmo: “Por certo, a substância por meio da qual vivemos e respiramos é uma só e a mesma. Porém, respiramos por meio de um fôlego natural: logo, também vivemos por meio do mesmo fôlego. Porém, vivemos por meio da alma: portanto, descobre-se que o fôlego natural é a alma. — Calcidius, 220 (SVF 2.879, part., linhas 20–27; LS 53G, linhas 1–5)

Do mesmo modo, Aécio, em seu livro Placita Philosophorum (Sobre as opiniões dos filósofos, séc. II a.C.), afirma:

οἱ Στωικοὶ τὰ μὲν πάθη ἐν τοῖς πεπονθόσι τόποις, τὰς δ᾽ αἰσθήσεις ἐν τῷ ἡγεμονικῷ. Aetius, Plac. 4.23.1 (SVF 2.854; LS 53M)

“Os estoicos dizem que as afeições (páthe) se dão nas regiões afetadas, mas as sensações (aísthéseis) na parte comandante”[3]

Além de ser feita de spiritus, a alma é sozinha responsável pela vida (item Chrysippus ‘uma et eadem’ inquit ‘certe re spiramus et uiuimus, SVF 2.879, linha 25–26; LS 53G linha 1) e é uma região central de comando de todo corpo. Crisipo em sua teoria das misturas assume que o corpo é unificado por um fôlego que o pervade por completo.[4] Dentro do esquema dos quatro elementos (terra, água, ar, fogo), o pneuma é uma mistura de ar e fogo com uma textura fina (“fine texture”, GRAVER, 2007, p. 19). Isso é ilustrado por uma imagem no seguinte excerto senequiano:

Você não vê como os elementos são contrários entre si? São pesados e leves, frios e quentes, úmidos e secos: toda a harmonia do mundo provém de coisas contrastantes entre si: você nega que o cometa seja uma estrela, pelo fato de que a forma dele não corresponde ao exemplar, nem aos outros astros parecidos com ele? (Sen., Nat. Quaest. 7.27.4— tradução minha.

Graver nos lembra (2007, n. 9, p. 225), e para nossa investigação é de fato importante ressaltar, que os quatro elementos básicos da filosofia estoica não são elementos no sentido moderno, como materiais de composição química fixa; são, na realidade, “partes de matéria” (“portions of matter”, 2007, p. 225) que se caracterizam por uma das quatro diferenciações principais: frio ou quente, seco ou molhado. Por isso, tudo o que é quente no universo tem fogo misturado em si. Ainda dentro do esquema dos quatro elementos, os dois que compõem o spiritus são opostos, pois o ar é frio e o fogo é quente. Essa diferença gera as tensões diferentes dentro do pneuma, tensões que vão causar as variações das próprias coisas, objetos e corpos com os quais o pneuma se relaciona.

No diálogo filosófico Sobre a natureza dos deuses (De natura deorum, 45 a.C.), lemos:

De fato, a realidade é tal que tudo o que se alimenta e cresce contém em si a força do calor, sem a qual não poderia nem se alimentar nem crescer, já que tudo o que é quente e ígneo se impulsiona e se move por seu próprio movimento; ora, o que se alimenta e cresce faz uso de algum movimento determinado e uniforme; e este por quanto tempo dura em nós, por tanto a sensação e a vida duram, mas, esfriado e desaparecido o calor, nós próprios tombamos e morremos. E isto precisamente, quanta força de calor há em todo corpo, Cleantes mostra também com estes raciocínios: nega, com efeito, haver algum alimento tão pesado que não seja digerido de noite e de dia; e em seus restos, naqueles que a natureza repeliu, também há calor. Por outro lado, as veias e artérias não param de latejar como que por certo movimento ígneo, e observou-se freqüentemente que, quando o coração de algum ser vivo é arrancado, palpitava tão vivamente que semelhava a celeridade ígnea. Portanto, tudo que vive, seja animal seja parido da terra, vive por causa do calor nele encerrado. Daí deve-se compreender que aquela natureza do calor tem em si uma força vital estendida por todo o mundo. (Cic. De natura deorum, 2.23–25, WALSH, 2016 — Trad. de VENDEMIATTI, 2003, p. 64–65)

O fogo e o calor que está em todas as coisas é o que permite que tudo cresça; por isso Cícero, ao expor a teoria estoica, argumenta que, quando não há mais calor, não há mais vida. É interessante notar como os estoicos explicavam toda a ação humana ou evento da natureza por meio de sua física do pneuma, até mesmo a digestão, conforme Cleantes (segundo a obra de Cícero) explica. Por sua vez, a conclusão apresentada no texto de Cícero é a chave para entendermos a tão atrelada conexão entre a força vital e o mundo. Em suma, o calor tem uma força vital que perpassa todo o mundo.

A partir da chamada “teoria da mistura” (“theory of mixture”) Long (2008 [1987], p. 292) explica que, visto que o fôlego (spiritus em latim; pneuma em grego) é o veículo divino — por ser feito da mesma substância que a própria divindade — Ep. 92.30, como veremos mais adiante ao tratar da ação que dá vida e movimento a tudo, e visto que só corpos interagem com corpos, sua ação causativa no mundo inteiro deve ser explicada por sua interação com todas as matérias. Por isso, os estoicos precisavam explicar a todo momento a conexão do spiritus com a matéria. Sêneca se ocupa também desse assunto em suas Cartas:

Agora, não imagine que sou o primeiro de nossa escola que não fala segundo regras, mas tem seu próprio modo de pensar: Cleantes e seu discípulo Crisipo discordavam quanto ao que era o ato de caminhar. Cleantes sustentava que era o espírito transmitido a partir da essência principal até os pés, ao passo que Crisipo sustentava que era a essência primordial em si. Por que, então, segundo o exemplo do próprio Crisipo, não deveria cada homem reivindicar sua própria liberdade e rir de todos esses seres animados, — tão numerosos que o próprio universo não os pode conter? “As virtudes” dizem[5], “não são muitos seres vivos e, no entanto, são coisas vivas. Pois, assim como um indivíduo pode ser poeta e orador e, entretanto, ser um, da mesma forma essas virtudes são coisas vivas, sem serem, porém, muitas. A mente é a mesma: e pode ser, ao mesmo tempo, uma mente não somente justa como também prudente e ainda corajosa, mantendo-se em certa atitude em relação a cada virtude”[6]. A disputa está resolvida[7] e, portanto, estamos de acordo. Pois também eu devo admitir, entretanto, que a alma é uma coisa viva, desde que com a condição de que mais tarde eu possa dar meu voto final; mas nego que os atos da mente sejam seres viventes. Caso contrário, todas as palavras e todos os versos estariam vivos; pois, se a fala prudente é um bem, e todo bem uma coisa viva, então a fala é uma coisa viva. — Ep. 113.23–25, grifos nossos — tradução minha.

O trecho da epístola senequiana reportado acima, além de nos trazer uma pequena discordância entre Crisipo e Cleantes, nos dá uma amostra prática do modo como os estoicos se esmeravam em empregar a ideia do spiritus que pervade todas as coisas como explicação para tantas questões, até mesmo para o ato de caminhar (ambulatio). Sêneca tenta explicar sua posição: para ele, nem tudo que é gerado pela interação do spiritus com um outro corpo é necessariamente um ser vivo (animal). Em seu tratado sobre a ira, Sêneca dialoga com Aristóteles[8], por vezes com ele concordando, por vezes discordando dele ou acrescentando algo ao filósofo grego. É-nos possível pensar que nas Cartas (Ep. 13, 15, 19, 24, 29, 75, 77, 91, 108, 110) temos como pano de fundo teorias antigas sobre os quatro movimentos patológicos (i.e. das paixões) da alma, que atualmente estudiosos (a partir de exposições encontradas em Cícero e de fragmentos citados por Estrobeu e Andrônico de Rodes) consideram estar presentes no estoicismo como um todo[9]. Esses movimentos compõem a chamada de “teoria estoica da cognição”, ou “teoria das paixões”, que consiste no entendimento de que as essas (affectus) se originam a partir de um julgamento falso. Em seu De ira, percebemos que, para o preceptor de Nero, as emoções seguiam um caminho na cognição: em primeiro lugar, a pessoa precisaria reconhecer a natureza do estímulo (injúria no caso da raiva); em seguida deveria julgar o mérito do estímulo, por isso então, esse processo envolve atos mentais voluntários e não somente reflexos instintivos seja do corpo ou da mente.

A respeito disso, David Konstan se pergunta “por que Sêneca, os estoicos e Aristóteles reconhecem que as emoções envolvem julgamento, por isso são processos cognitivos e insistem na natureza voluntária de atos mentais?”[10] Esse aspecto não meramente instintivo remete-nos ao tribunal das emoções, à ponderação à qual o leitor é chamado diante da agitação da mente e do espírito. As paixões, para serem tais, precisam ser maleáveis à razão, é algo cujo controle pode-se reivindicar o controle (De ira 2.2.1).

A alma tem ações (actiones eius) e são essas ações, no contexto acima, o motivo da controvérsia entre Cleantes e Crisipo: para Cleantes o ato de caminhar é uma transmissão que vai da essência principal no texto de Sêneca: a principali para o pé; para Crisipo o ato de caminhar já é a essência principal (ipsum principale). Sêneca se vale de poesia para afirmar seu ponto de vista:

Mas, “se alguém tem virtude e alma em seu corpo” [11], será parecido com os deuses, uma vez que, lembrando-se de suas próprias origens, tende a voltar para elas. Ninguém age de maneira imprópria ao tentar subir de onde desceu. Qual seria a razão de você não acreditar que existe algo de divino em quem é parte de deus? Tudo o que existe aqui onde estamos confinados é uma unidade e é deus; somos seus sócios e seus membros. Nossa mente é capaz de chegar até a ele, se os vícios não a empurrarem para baixo. Da mesma maneira que a postura do nosso corpo é ereta e olha para o céu, assim também é a nossa mente, que se alonga o quanto quiser, na direção em que preferir e foi formada pela Natureza, para desejar as mesmas coisas que os deuses. E, caso se sirva da força que lhe é própria e avance no seu próprio espaço, não se empenhará em direção ao topo por outra via. Ep. 92.30-Grifos nossos— tradução minha)

Tendo em vista as questões que nos movem, evidenciamos dois aspectos importantes da passagem acima. Um deles é que (não pela primeira vez) Sêneca faz referência à natureza como uma regra para o ser: a natureza não é somente a origem (hoc a natura rerum formatus est), mas é a medida com a qual o aspirante a seguir a filosofia estoica deve se comparar (cum rerum natura delibera: illa dicet tibi et diem fecisse se et noctem. Ep. 3.6, “Decida tendo em conta a natureza: ela lhe dirá que fez tanto o dia como a noite”). Lembramo-nos aqui da epígrafe empregada nesta seção 2.1, frase que emprestamos de Pierre Grimal: “No centro da filosofia de Sêneca, tal como ao centro do estoicismo clássico, se encontra a ideia da Natureza”.[12]

Em segundo lugar, Sêneca se aproxima mais uma vez de estoicos a ele anteriores ao associar com tanta certeza a virtude e a racionalidade humana com o divino. O ser humano é igual a deus, mas em que sentido? Em suas Questões Naturais, o autor nos explica:

Que diferença há entre a natureza de deus e a nossa? Nossa melhor parte é a mente (animus); em deus não há nenhuma parte fora a mente: ele é todo razão. (Quaest. Pref 1.14) Grifos nossos — tradução minha

À maneira tipicamente senequiana, com seu estilo epigramático (“epigrammatico”, BOELLA, 1983, p. 17; TRAINA, 1978, p. 34) caracterizado por sentenças curtas encadeadas em um crescendo de intensidade na medida em que elas se encurtam cada vez mais; um fulmen in clausula (TRAINA, 1978, p. 34) conclui o período: totus est ratio. Não é inocente a associação que Sêneca faz entre deus, animus e ratio. Isso porque, se compartilhamos algo com o divino, esse algo será a razão, uma vez que o divino é a razão.

Em termos materiais, conforme mencionado nos parágrafos anteriores, compartilhamos da “matéria física” que compõe o divino; esse spiritus que permeia todas as coisas e se conecta com a estrutura e organização do universo como um todo. Ratio é a palavra latina que Seneca e Cícero escolhem para traduzir o termo “ontológico grego ‘logos’” (HADOT, 2014, p. 14).

Em outra carta, Sêneca afirma que é coisa de tolo pedir uma boa mente (bonam mentem, Ep. 41.1) aos deuses, porque ao homem é possível obtê-la por si mesmo, portanto, não é preciso elevar as mãos aos céus, ou falar com estátua alguma. Depois disso, o missivista afirma:

Deus está perto de você, está com você, está dentro de você. Assim eu digo, Lucílio: um espírito (spiritus) sagrado tem sua sede dentro de nós, é observador da nossa bondade e maldade e nosso guardião; é tratado por nós conforme nós o tratamos. (Ep. 41.1–2) — tradução minha

É impossível deixar de ver a dimensão sagrada que também permeia os escritos estoicos; mas é importante notar a aproximação do sacer spiritus com algo que está dentro do ser humano e o guia. A explicação dessa parte da física estoica confirma a continuidade que Sêneca e os outros estoicos viam entre deus, a razão, o animus humano e a constituição da própria Natureza. O spiritus é, portanto, um termo com sentido específico no estoicismo, que, nessa filosofia, carrega as características que tentamos delinear na presente seção.

Em tempo: antes de passar, pois, à sua relação com o tema das emoções, central à nossa investigação, cabe mais uma ponderação sobre a tradução dos termos-chave aqui mencionados (pneuma, anima, spiritus), e uma breve inclusão de uma outra noção, igualmente importante (to hēgemonikon) e suas possíveis versões para o latim (ipsum principale, principatum, mens, animus) e para nosso idioma. Em sua monografia sobre estoicismo e emoções, Graver (2007, p. 21) menciona que prefere não utilizar muito a palavra “soul” (“alma” em inglês) para se referir ao pneuma, evitando trazer ao seu estudo a conotação teológica que o termo pode acarretar no idioma inglês, a qual foge dos escopos do trabalho da estudiosa. De nossa parte, preferimos tentar manter a diversidade lexical que Sêneca aporta em seus textos.

Na medida do possível, como vimos tentando fazer, buscaremos traduzir os termos que se referem a essa central de comando interior do ser humano recorrendo a palavras que marquem as escolhas de Sêneca, atentando à sua repetição e variação e ao seu significado para os aspectos teóricos do tema das emoções. Apesar de os termos “mente”, “espírito”, “alma”, entre outros, estarem potencialmente eivados de também outras conotações em nosso português corrente, buscaremos traduzir mens e animus por “mente” (quando o significado de animus não parecer que explicitamente esteja se referindo à palavra “ânimo” em português, acepção mais rara em latim, já que no OLD é o número correspondente ao sentido 13 e 14 “humor, disposição e força”). Spiritus, a depender do contexto, será vertido por “espírito” ou “fôlego”. Ademais a tradução de anima tenderá a ser “alma”, mas às vezes também corresponderá a “fôlego” vital.

Como vimos acima, o termo grego pneuma, bem como em latim spiritus parecem fazer referência à matéria física que compõe a alma humana. Contudo, no estoicismo grego o termo que se utiliza para falar da função central da alma é tó hēgemonikon. Parece-nos que Sêneca se refere a essa função algumas vezes com a palavra principale, como acima, em ipsum principale Ep. 113.24; e em Ep. 113.23–24: ‘Constitutio’ (…)‘est, ut uos dicitis, principale animi quodam modo se habens erga corpus (“Vocês dizem que a constituição principal da alma de alguma forma interage com o corpo”, Ep. 121.10). O tó hēgemonikon é aquilo que De Pietro (2013, p. 128) traduz como “parte comandante” e Graver como “faculdade central diretiva” (“central directive faculty”, 2007, p. 21). Cícero em seu Sobre a natureza dos deuses (De natura Deorum) explicita que está utilizando a palavra latina principatum para aquilo que os gregos chamam de hēgemonikon:

“Existe, então, uma natureza que contém todo o mundo e o protege, e ela certamente não é sem sensação e razão; de fato, é necessário que toda natureza que não seja isolada nem simples, mas unida e ligada a outro ser, tenha em si algum princípio dirigente, como no homem a mente (mentem), na besta algo semelhante à mente de onde nascem as inclinações para as coisas; ao passo que das árvores e daquelas coisas que se geram da terra é nas raízes que se julga estar o princípio dirigente. E como princípio dirigente designo aquilo que os gregos chamam hegemonikôn, ao qual nada em cada gênero nem pode nem deve ser superior; deste modo, é necessário que aquilo mesmo em que está o princípio dirigente da natureza inteira seja o melhor de todos e o mais digno de poder e domínio sobre todas as coisas. (trad. de VENDEMIATTI, 2003, p. 66, grifos nossos, levemente alterada).

A partir dessa passagem ciceroniana, podemos também ver que por vezes hēgemonikon é traduzido por mens em latim, que LS traz em inglês como “intelligence”, e que, segundo que,[13] nossa impressão é que Sêneca utiliza por vezes de maneira intercambiável com animus conforme vemos no trecho da Ep. 2: aegri animi ista iactatio est: primum argumentum compositae mentis existimo posse consistere et secum morari, grifo nosso (“A mente fraca é que tem essa preocupação: penso que a primeira prova de uma mente bem-disposta[14] é a de poder manter-se e habitar consigo mesma. ”, grifo nosso Ep. 2.1). Giuseppe Scarpat (1975, p. 47–49) decide servir-se da diversidade disponível na língua italiana traduzindo aegri animi por “animo ammalato” e compositae mentis por “mente equilibrata”; já Segurado e Campos (2004, p. 3) verte por “alma doente” aegri animi, e “espírito bem formado”, compositae mnentis” diferente de Canali (2018, p. 61) que em língua italiana escreve “spirito malato” (aegri animi) e “animo equilbrato” (compositae mentis). Os tradutores anglófonos também variam em sua língua de destino: Gummere (1996, p. 7) se serve das palavras “spirit” para animi e “mind” para mentis; Graver e Long (2015, p. 26) decidiram verter utilizando duas vezes a palavra “mind” (“a mind in poor healt”, aegri animi; “a settled mind”, compositae mentis). Entendamos portanto, que a tradução é razoavelmente variável tendo assim um critério dificilmente discernível; em virtude do escopo do nossos trabalho buscaremos explicitar a palavra latina quando necessário, buscando manter o padrão que acima explicitamos sobre a tradução das palavras anima e animus.

Como Graver (2007, p. 22) evidencia, fundamental é que há uma centralização da atividade psíquica, uma vez que tudo o que acontece no nosso corpo é gerenciado e passa por essa central de comando, que se localizava, segundo a maioria dos estoicos, no peito (Calcídio, 220, SVF 2.879; LS 53G) e, conforme outros, no cérebro (Galeno De usu respirat. 4.502; SVF 2.783).

NOTAS

[1] Com o objetivo de facilitar a apreciação do modo como interpretamos os textos latinos, procuramos, sempre que possível, acrescentar outras traduções além da nossa, publicadas em línguas modernas. A que se segue é de Holmes (1870): “Cleanthes, too, will have it that family likeness passes from parents to their children not merely in bodily features, but in characteristics of the soul; as if it were out of a mirror of (a man’s) manners, and faculties, and affections, that bodily likeness and unlikeness are caught and reflected by the soul also. It is therefore as being corporeal that it is susceptible of likeness and unlikeness. Again, there is nothing in common between things corporeal and things incorporeal as to their susceptibility. But the soul certainly sympathizes with the body, and shares in its pain, whenever it is injured by bruises, and wounds, and sores: the body, too, suffers with the soul, and is united with it (whenever it is afflicted with anxiety, distress, or love) in the loss of vigour which its companion sustains, whose shame and fear it testifies by its own blushes and paleness. The soul, therefore, is (proved to be) corporeal from this inter-communion of susceptibility”. O texto latino aqui reportado é a edição de Jerónimo Leal, Paris, 2019.

[2] Sobre tal polissemia no termo grego psiquê (respiração, alma e também designando “borboleta”), veja-se, por exemplo, Petersmann (2003).

[3] Tradução nossa do texto grego baseada na versão inglesa de LS 53M: “The Stoics say that [bodily] affections occur in the affected regions, but sensations in the commanding-faculty.”

[4] Alexandre de Afrodisias De mixtione 216.14–218.6 (LS 48 C; SVF 2.473).

[5] Inquit: o verbo em terceira pessoa é traduzido de modo diverso pelos tradutores consultados: ou atribuindo o parágrafo entre aspas a um sujeito impessoal, “dizem” (SEGURADO E CAMPOS, 2004, p. 625); “si osserva” (BOELLA, 1983, p. 901); ou ao adversário “the opponent says” (KASTER, 2010, p. 449).

[6] Animus: note-se que aqui temos o uso de animus e não anima. Embora houvesse autores antigos que mantinham a distinção semântica entre os vocábulos, como por exemplo, em Virgílio; para Angela Negri (Enc. Virg. 1984 p. 171, 173, 176, 177), um uso indistinto já se notava também na Antiguidade. Ainda segundo Negri, anima poderia significar o ar, o respiro e a parte vital do ser humano; ao passo que animus se referiria com mais frequência à realidade psicológica da parte vital do ser humano, porém para a estudiosa, Virgílio não trabalha com uma distinção filosófica de anima e animus como Lucrécio teria feito cf. Alfieri (La concezione dell’anima in Lcurezio 1966). No trecho em pauta, animus é traduzido de modo equivalente a anima em Segurado e Campos que traduz por “alma” (2004, p. 625); encontramos “l’animo” em italiano (BOELLA, 1983, p. 901); e “mind” em inglês (KASTER, 2010, p. 449).

[7] Segurado e Campos traduz “Nestes termos, acaba-se a desavença e estamos todos de acordo” (2004, p. 625); “La disputa é finita, siamo d’accordo” (BOELLA, 1983, p. 901); “The controversy is settled; we are in agreement” (KASTER, 2010, p. 449).

[8] De ira, 1.3.1; 1.9.2; 3.3.1; 3.17.1.

[9] De Pietro (2013, p. 208–2011, 234) e Manning (1976). Cf. também especialmente Stob. 2.88.16–18; Cic. Tusc. 3.24–25; Andronic.Rhod. De Passionibus 1(= SVF 3.391 = LS 65B).

[10] Konstan, 2013 p. 177.

[11] Si cui uirtus animusque in corpore praesens: nas edições da Eneida de Virgílio, lê-se não in corpore (no corpo) e sim in pectore (no peito): ‘nunc, si cui uirtus animusque in pectore praesens, adsit et euinctis attollat bracchia palmis’:Aen. 5.363–4 (grifos nossos), na tradução de Odorico Mendes: “Agora quem valor no peito encerra / Sus, os braços levante, as mãos ligadas.” Sobre as citações “erradas” no texto de Sêneca (com estudo especial sobre Homero), cf. Schmitzer (2000), também sobre as relações entre Sêneca e Virgílio, cf. Knight, 2021; Marshall, 2021.

[12] Sobre a ideia de se viver segundo a Natureza (secundum natura uiuere) em Sêneca, e sua correspondência em outros autores do estoicismo grego e romano, ver De Pietro (capítulo “Naturae consentire: harmonia entre a vontade pessoal e o destino”, 2008, p. 89–117).

[13] Kaster (2010), ao traduzir o De Ira, escolhe traduzir anima por “soul” em inglês e animus por “mind”, seguindo a proposta de Graver que prefere utilizar a palavra “mind” em inglês para verter psyche para não haver confusões com os significados teológicos da palavra soul no inglês corrente. Em nossa leitura de Segurado e Campos (2004) traduz animus por vezes por “alma” (Ep. 113.24) e por vezes por “ânimo” (Ep. 9.3); o mesmo acontece com a língua italiana (BOELLA, 1983) “anima” (Ep. 113.24) e “animo” (Ep. 9.3). De Pietro (2008) traduz na Ep. 66.6 animus por “alma” (Animus intuens uera, peritus fugiendorum ac petendorum, non ex opinione sed ex natura pretia rebus imponens; “é uma alma que contempla o que é verdadeiro, hábil em distinguir o que deve ser evitado ou almejado, que calcula o valor (pretia inponens) das coisas não segundo o senso comum, mas segundo a natureza” Ep. 66.6 trad. de De Pietro 2008, p. 14–15, grifos nossos) e também em Ep. 74.31 animus é traduzido por “alma”. Em outra carta encontramos “espírito” (fac potius quomodo animus secum consonet nec consilia mea discrepent, “Ao invés disso, ensine-me como meu espírito pode estar de acordo consigo mesmo e como fazer com que minhas decisões não sejam discrepantes”, Ep. 88, 9 trad. de DE PIETRO, 2008, p. 69, grifos nossos). Mas também traduz por “mente” a mesma palavra como lemos em Ep. 82.8 (“Nunc animis opus, Aenea, nunc pectore firmo”. Faciet autem illud [sc. pectus] firmumadsidua meditatio, si non uerba exercueris sed animum, si contra mortem te praeparaueris, aduersus quam non exhortabitur nec attollet qui cauillationibus tibi persuadere temptauerit mortem malum non esse.Agora é preciso ânimo, Enéias, agora um peito firme. Ora, há de o tornar firme um constante treinamento: se você tiver exercitado não as palavras, mas a mente; se você se tiver se preparado contra a morte, contra a qual aqueles que, por meio de sofismas, tiverem tentado te convencer de que a morte não é um mal, nem encorajarão, nem elevarão.” Ep. 82.8, trad. de DE PIETRO, 2013 p. 158, grifos nossos.)

[14] Composito (OLD compositus sentido 5 e 7, cf. compono sentido 6 e 14). Notamos que o termo é utilizado com uma certa frequência pelo filósofo no primeiro livro de suas cartas: compositae mentis (Ep. 2.1); animo composito (Ep. 4.1), dum componis, (Ep. 4.1); composita paupertas (Ep. 4.10); aliquid ex eo quod composui turbatur (Ep. 7.1). Conforme o OLD, a palavra traz a acepção de organização, disposição, e também de algo que não é perturbado pelas paixões, i.e. algo acalmado, plácido, sedado.

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Ana Bezerra Felicio

PhD candidate in linguistics and classical studies at the State University of Campinas in Brazil. My research is on the emotions in Senecan philosophy and drama