O perigo e o potencial das Escrituras no testemunho político dos cristãos

Ana Bezerra Felicio
9 min readApr 25, 2022

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Esse texto é mais parecido com um fichamendo do que qualquer outra coisa.

Estive lendo o Capítulo “The Peril and Potential of Scripture in Christian Political Witness” Mark A. Noll do livro Christian Political Witness. Escrevo a seguir algumas reflexões. O autor traz 5 pontos, a partir do momento da Guerra Civil na história dos EUA, sobre os quais refletir para que os cristãos tenham um relacionamento saudável com as Escrituras no posicionamento público e político diante de questões contemporâneas. Ao analisar a postura pública de pastores, rabinos e políticos na época da guerra civil, ele nos mostra como pode ser perigosa a instrumentalização das escrituras. “Em particular, este exemplo americano da utilização das Escrituras para o testemunho político cristão ilustra uma série de problemas específicos que se repetem em grande parte do uso da Bíblia no mundo ocidental, especialmente desde a Reforma” os 5 pontos apresentados são:

  1. as complicações implicitas da retórica bíblica;
  2. o problema persistente do biblicismo protestante;
  3. o excepcionalismo americano e sua hubris herética;
  4. a sutil sedução da natureza humana decaída;
  5. a complicada questão da própria revelação bíblica.

1- As Complicações Implícitas do uso da retórica bíblica

“Um primeiro problema foi as complicações implícitas da retórica bíblica. Juntamente com o apelo frequente às referências bíblicas em apoio de suas conclusões políticas, todos os autores [desses sermões públicos] citavam ou parafraseavam as Escrituras como partes constituintes de seu próprio discurso. Ou seja, os pregadores usavam as palavras da Bíblia como suas próprias palavras, mesmo quando as citações ou paráfrases não tinham nada a ver com a substância de seus ensinamentos.” “No entanto, se o emprego retórico constante do livro nacional era inevitável, [porque o ensino da Bíblia fazia parte da educação formal de todo americano culto e porque a KJV era a tradução mais comprada e lida — uma unica versao para o país inteiro] também era um problema para o testemunho político cristão. Esse uso retórico não apenas dava uma aura sagrada aos pensamentos do orador, mas também implicava que aqueles que se opunham à retórica do orador estavam de alguma forma se opondo à Palavra de Deus. Esse uso era perigosamente presunçoso, porque comunicava implicitamente que os propósitos do orador compartilhavam os propósitos divinos que inspiraram as Escrituras.”

2- O problema persistente do biblicismo protestante

Vamos explicar o que o autor entende por “biblicismo”

Para Noll “biblicismo” denota não apenas a crença protestante tradicional no caráter divino e a autoridade suprema das Escrituras, mas aquela crença tradicional que trata a escritura como suficiente em si mesma, sozinha portanto, sem nenhum outro aparato de auxílio, para proclamar a palavra de Deus. Nesses sermões, os autores nao so traziam muitas passagens das Escrituras, mas traziam sua interpretação das passagens como se a interpretação fosse a propria Escritura. “O problema do biblicismo surge quando a afirmação dogmática de seguir somente a Bíblia se transforma em uma incapacidade de reconhecer ou abordar as outras influências que levam as interpretações de textos individuais a despeito do testemunho bíblico como um todo.” Um exemplo muito claro disso, nesses sermões de 1860 e que os expositores confundiam claramente a escravidão biblica com a escravidão negra, sem nenhuma necessidade de contextualização ou explicação dos dois fenômenos. Assim eles defendiam a legitimidade da escravidão negra, como se fosse o mesmo que a escravidão apresentada na Bíblia.

“O problema não era o fato óbvio de que nos Estados Unidos os escravos eram de ascendência africana. O problema era que os pregadores gastaram grande esforço para definir sua fidelidade às Escrituras como o guia infalível para julgar a questão da escravidão, mas imediatamente foram além das Escrituras ao falar como se a escravidão simplesmente equivalesse sempre e somente à escravização apenas de afro-americanos. A aplicação bíblica teria sido bem diferente se os pregadores brancos tivessem considerado a possibilidade de seus próprios filhos um dia serem vendidos como escravos. Mas ao expor a revelação bíblica sobre a escravidão, a possibilidade de caucasianos serem escravizados era uma conclusão exegética mais fiel ao texto do que aplicar palavras bíblicas apenas a africanos.”

Noll conclui “A confiança protestante na autoridade divina das Escrituras não precisa ser uma a ingenuidade sobre a facilidade de aplicar a Bíblia a questões políticas. Mas certamente foi isso que aconteceu em debates sobre a crise política mais importante daquele momento histórico, como parece estar acontecendo quando os cristãos aplicam as Escrituras às contendas políticas de nossos dias.”

3- O excepcionalismo americano e sua hubris herética

Era comum que os pregadores entusiasmados expressassem a convicção de que “em toda a história do mundo nunca houve uma nação tão singularmente bem-sucedida em alcançar a liberdade, tão inequivocamente justa em sua história política e tão singularmente abençoada por Deus como os Estados Unidos da América.” Se Deus abençoou tanto assim os EUA como responder a brutalidade imposta aos nativos americanos? Alguns poucos pregadores responderiam com honestidade:

““É uma situação lamentável para uma nação cristã e, de fato, para a própria religião crista, que as pessoas religiosas mais livres e que mais ostentam sua religião para o globo seja absolutamente mortíferas [agentes de morte] para qualquer pessoa mais fraca que elas tocam”

A autocrítica de Beecher era, no entanto, incomum. “Uma fonte mais séria e mais questionável de excepcionalismo americano era a referência frequente aos Estados Unidos como cumprimento no mundo moderno das promessas bíblicas feitas ao antigo Israel. O tropo da América como o novo Israel estava profundamente enraizado nas convenções puritanas, e foi adotado por muitos outros fora da Nova Inglaterra durante a Guerra pela Independência.” “A identificação da história de Israel com a história dos Estados Unidos era, aliás, mais afirmada do que argumentada. Nenhuma exegese bíblica séria apoia a noção de que qualquer nação moderna, muito menos os Estados Unidos, merece ser entendida na mesma relação com Deus como o antigo Israel se relacionava com Deus. Era uma suposição enraizada no orgulho nacional e, portanto, herética. Foi um erro que prejudicou a mensagem universal do evangelho da Bíblia na época, e na medida em que o mesmo erro é cometido hoje quando o excepcionalismo americano vem sendo pregado novamente, exerce o mesmo efeito paralisante na mensagem do evangelho.”

4- A sutil sedução da natureza humana decaída

Os pregadores presumiam que suas avaliações dos acontecimentos de sua epoca eram tão infalíveis quanto as avaliações de Deus. As linhas errôneas de raciocínio que sustentavam esse erro tinham todas a mesma forma.

1- Eles começavam com um senso adequado da perfeição de Deus: Deus inspirou as Escrituras perfeitamente, Deus providenciou todos os eventos com perfeição, Deus forneceu diretrizes perfeitas para o arrependimento do pecado e a reconciliação consigo mesmo.

2- O segundo passo desse raciocínio era problemático pois a crença adequada no poder gracioso de Deus alimentava a conclusão imprópria de que os humanos desfrutavam de capacidades de conhecimento e controle que se igualavam às capacidades de conhecimento e controle de Deus. A linha pode ser muito tênue entre a confiança justificada na auto-revelação de Deus e a idolatria injustificada em relação à própria compreensão infalível dessa revelação.

O exemplo mais sério dessa dificuldade foi a confusão entre reconhecer a providência abrangente de Deus e tratar a própria leitura desses mesmos eventos como divinamente sancionados. Além disso, essa idolatria sacrílega era paralela à confiança ingenua de que o que estava claro na Bíblia para si mesmo tinha que estar claro para todos os outros. Expressava a persistente tendência humana de se colocar no centro do universo moral, um erro agravado por tratar os resultados das ações empreendidas a partir dessa autoconcepção equivocada como se fossem de Deus. Palmer foi acompanhado por muitos outros que também presumiam uma habilidade divina de dizer a Deus o que ele estava fazendo. Os sermões que Noll analisa foram pregados em ocasião da “jeremiad”, um dia de jejum proclamado naqueles tempos tao difíceis de guerra civil. A propria existência do dia de jejum era um sinal dessa sedução de poder controlar ou ter a sanção divina diante dos acontecimentos terrenos.

O que foi a JEREMIAD?

“O termo jeremíada veio das severas advertências do profeta Jeremias ao povo de Judá: “arrependa-se ou sofra as consequências!!”, que acabou sendo o cativeiro da Babilônia. A jeremíada, que os puritanos coloniais haviam aperfeiçoado, dava como certa a identidade entre o Israel nacional e os estados-nação modernos. Dava como certo quase com a mesma facilidade a crença de que as ações humanas poderiam compelir reações divinas. Assim, no final de 1860, os funcionários do governo que convocaram dias de jejum e as congregações que se reuniram para observá-los expressaram a convicção de que se os americanos se arrependessem de seus pecados pessoais e corporativos, a nação poderia ser poupada de um banho de sangue.

A conclusão do sermão do pastor Henry Bellows foi especialmente notável a este respeito. Bellows começou negando que ele e sua congregação de Nova York tivessem algum motivo especial para se arrepender, já que o pecado da nação naquela hora estava inteiramente com o sistema escravocrata. Sua solução para o que ele chamou de “doença nacional” foi deixar os estados do sul irem embora. No entanto, quando ele chegou ao final de seu sermão, ele combinou as Escrituras, o excepcionalismo americano, sua própria leitura da providência e o padrão quid pro quo do raciocínio-jeremíada em um final empolgante:

A União é forte o suficiente para suportar até mesmo essa tremenda tensão agora tentando seus aros. Queremos apenas fé na Constituição como ela é; fé no direito das maiorias políticas de exercer seu poder legítimo; fé na sabedoria original de nossos pais fundadores; fé na humanidade; fé em Cristo e em Deus, para nos conduzir triunfalmente através desta hora gloriosa, mas terrível, quando a maior estrutura política que a providência de Deus já permitiu ser erguida ha de ser finalmente testada pelo terremoto, e para provar, não duvido, que repousa sobre a rocha dos séculos, e durará enquanto o tempo durar. (310)

Em sua grande autoconfiança sobre a capacidade de ler a providência como se fossem Deus, os americanos do Norte e do Sul, e de todas as opiniões políticas, foi assim vítima da fraqueza da natureza humana caída. Eles haviam perdido a sabedoria bíblica profunda que William Cowper, o poeta do século anterior, havia captado tão poderosamente em um hino memorável. Esse hino foi impresso em mais de um terço dos hinários publicados nos Estados Unidos durante a década de 1850.

Começava: “Deus se move de maneira misteriosa / Suas maravilhas a realizar”; terminava: “Deus é o seu próprio intérprete / E ele os esclarecerá”. “Eles cantavam, mas não acreditavam naquilo que cantavam.” diz Noll.

O exemplo americano diz respeito ao uso das Escrituras como encontrado em apenas um livro, um volume incomumente abrangente publicado em um momento político incomumente intenso. O livro, intitulado Fast Day Sermons: or, The Pulpit on the State of the Country, apareceu no início de 1861, após a eleição de Abraham Lincoln e a secessão da Carolina do Sul da União, mas antes do incêndio em Fort Sumter em abril de 1861 que começou a Guerra Civil. Este livro contém onze capítulos: dez sermões ou discursos proferidos em dias de jejum proclamados por governos estaduais ou pelo presidente James Buchanan.

5- A DIFÍCIL QUESTÃO DA REVELAÇÃO BÍBLICA EM SI

Para Noll essa é a questão mais importante. Aqueles dias de jejum nacional com sermões sobre questões políicas de sua época nos colocam diante de muitas questões importantes:

— Como as Escrituras formam a vida do cristão?
— Como a Bíblia, que os crentes universalmente acreditam trazer a mensagem da redenção em Cristo para a humanidade, fala às múltiplas esferas da existência humana?
— O que a Bíblia ensina sobre o status dos estados-nação modernos?

Uma outra questão, talvez a principal da época de que estamos falando (1860–61)
— O que as Escrituras ensinam sobre a escravidão humana? Essa questão estava na base dos apelos para usar a Bíblia como testemunho político cristão.

“A partir das declarações antitéticas que respondiam peremptoriamente a essa pergunta, deveria ter ficado óbvio que muito maior cuidado era necessário para passar da atenção à mensagem de salvação em Cristo das Escrituras à aplicação da fé bíblica em Cristo à crise americana. O abismo que separava interpretações contraditórias das interpretações bem fundamentadas era, de fato, imenso.”

  1. Até que ponto a compreensão profunda das culturas bíblicas é necessária para aplicar as Escrituras adequadamente às culturas contemporâneas?
  2. A revelação bíblica é estática ou progressiva?
  3. A ética bíblica e a teologia bíblica foram ambas extraídas diretamente das Escrituras ou a ética bíblica surgiu da teologia bíblica?

Para Noll essas foram as questões mobilizadas ao longo de todos os sermões que ele analisa. Essas questões são relevantes para a nossa relação com as Escrituras na esfera pública hoje em dia.

“O uso frutífero das Escrituras para o testemunho político cristão nunca pode ser uma simples questão de escolher seguir o espírito ou a letra da Bíblia; significa, em vez disso, um discernimento abrangente em que textos individuais às vezes terão grande peso quando em outros momentos o raciocínio contextual, cultural, progressivo e amplamente teológico deve conduzir a interpretação”

Quem diria que questões de interpretação de texto seriam tão relevantes diante de uma das maiores crises da hisória americana, bem como diante das crises dos nossos dias atuais?

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Capítulo de Mark Noll no livro Christian Political Witness

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Ana Bezerra Felicio

PhD candidate in linguistics and classical studies at the State University of Campinas in Brazil. My research is on the emotions in Senecan philosophy and drama